terça-feira, 29 de novembro de 2022

História do Corporativismo - Azevedo de Amaral



(Trecho do livro O Estado Autoritário e a Realidade Nacional, Azevedo de Amaral, cap. III)

A ideia corporativista, cujas origens históricas são remotas, não nos cabendo aqui examiná-las, reapareceu no mundo contemporâneo há muitos decênios em consequência de fatos de duas categorias. Preliminarmente deve-se lembrar que as organizações corporativas, destruídas em França pela revolução de 1789 e desaparecidas nos países latinos pela repercussão que neles teve a grande crise francesa do século XVIII, nunca haviam cessado de existir na Inglaterra. 

Nos últimos anos do século passado e mais acentuadamente no princípio do atual, a história, do período medieval começou a ser feita de modo muito mais sério que até então. Em torno daquela época se haviam formado ideias errôneas, convergentes todas para a conclusão de que a Idade Média fora apenas um período de, superstição, de ignorância, de peste, lepra, queima de feiticeiras e outras coisas, que se enquadravam em um conjunto sinistro de obscurantismo, crueldade e sofrimento humano. Hoje, somente ignorantes repetem essas calúnias acerca de uma das fases da história do Ocidente que, sob vários pontos de vista, contém as expressões mais nobres e mais enérgicas do gênio da Europa. Entre as descobertas que a pesquisa erudita do último meio século veio pôr em foco, uma das mais interessantes sem dúvida é a concernente à organização da economia medieval. 

Em muitos dos seus aspectos e, particularmente, no sentido que a orientava, a economia medieval foi organizada de modo mais humano e mais inteligente do que ocorreu no período da pós-renascença e, sobretudo, no de transição do início do grande capitalismo, começada com a revolução industrial do século XVIII. O eixo daquela organização econômica, que corresponde de um modo tão curiosamente preciso às mais modernas e avançadas ideias do economismo social contemporâneo, era a corporação profissional. O individualismo que se vem expandindo desde a Renascença, hipertrofiando-se até culminar nos excessos do “laissez faire” manchesteriano, obliterou por tal forma o conceito da solidariedade econômica coletiva, que o século XIX, entre as suas mais graves heresias, incluiu a ideia de que a corporação medieval era um fóssil sociológico, ao qual se devia atribuir a lentidão do progresso econômico da Idade Média. Nas páginas do livro de Henri de Man a que acima aludimos, está contida réplica adequada a essa opinião tão infundada, mas que foi repetida como matéria de fé até os primeiros anos do século XX. 

O despertar do interesse histórico pelo corporativismo medieval havia sido precedido, de algumas dezenas de anos, pela eclosão do moderno sindicalismo. As Trade Unions inglesas, desde meados do século XIX, se tinham tornado não somente poderosos instrumentos de defesa de classe, como pouco a pouco haviam desenvolvido atividades políticas, assegurando a eleição parlamentar de representantes sufragados pelo voto dos seus membros. Em França, a reação contra o anti-corporativismo, no período da grande revolução, crescera até impor, em 1884, o reconhecimento legal dos sindicatos. O mesmo acontecia em outros períodos europeus e, nos Estados Unidos, a organização corporativa progredia também, encaminhando-se para ter como expressão máxima da sua força uma formidável associação, a American Federation of Labour. Ao mesmo tempo irrompia um movimento intelectual com múltiplas correntes, variando desde o preconício romântico do restabelecimento do “guild” medieval puro e simples, até o de formações com caráter acentuadamente anarquista. O sentido de todas essas tendências aparece, na sua expressão máxima, através da obra de George Sorel, que marcou o ponto de partida de uma nova fase na orientação filosófica das correntes coletivistas modernas.

Ao lado desses fatores preponderantemente culturais, aos quais se juntavam, é claro, as razões de ordem econômica e política, surgiram determinantes da renascença do corporativismo, promanadas exclusivamente de imperiosos motivos de natureza econômica. A expansão incessante do individualismo, estimulado pelas ideias liberais e constituindo mesmo um dos elementos inerentes à essência do regime democrático-liberal, precipitou a ação de causas, que na lógica do seu encadeamento conduziram as nações ocidentais e depois outros países do mundo a uma situação em que todas se viram defrontadas pela perspectiva do comunismo revolucionário e destrutivo. Como alternativa a essa ameaça, que atingia nas suas possibilidades os próprios fundamentos da civilização irradiada da Europa, o surto do neocapitalismo caracterizado pela produção em massa, tornada possível pelos enormes e incessantes aperfeiçoamentos da técnica mecânica das indústrias, podia sem dúvida oferecer uma alternativa salvadora.

Condições inerentes à própria natureza essencial do capitalismo da produção em massa vieram anular o valor teórico e o alcance prático da doutrina de Marx sobre o caráter irredutível da luta entre o capital e o trabalho. Em vez de um conflito perpétuo e cada vez mais acentuado entre empregados e empregadores, o que veio a ocorrer em consequência do surto do grande capitalismo da produção em massa foi a identificação dos interesses do operariado e do patronato. O trabalho, que a economia clássica, nos termos das bem conhecidas ideias de Ricardo, encarava como uma mercadoria pela qual o empregador tinha interesse em pagar o mínimo possível, apareceu, no jogo da economia contemporânea, com um aspecto que o famoso elaborador da teoria do fundo de salário não pudera imaginar. 

No sistema da produção em massa, os trabalhadores formam em conjunto a melhor parte do mercado consumidor da produção. Em tais circunstâncias, longe de ter interesse em pagar salários baixos, o patronato tem necessidade de elevar ao mais alto nível possível a remuneração dos seus empregados, a fim de que, em um regime de salário alto e generalizado, aumente proporcionalmente o poder aquisitivo do mercado que deve absorver a formidável massa de artigos produzidos. Assim, o castelo teórico, edificado por Marx sobre a base efêmera de uma experiência econômica limitada à situação da Inglaterra de meados do século passado e que se articulava todo em torno de ideias econômicas, tornadas mais tarde obsoletas, ruiu fragorosamente. O marxismo não foi destruído pela argumentação dos seus adversários. Caiu por terra sob a pressão irresistível dos progressos da técnica industrial, que tornaram possível a produção em massa. 

Mas se o marxismo, que os fascistas dizem estar hoje empenhados em combater quando ele já se acha há muito morto e mumificado como um fóssil sociológico, desapareceu no conjunto dos problemas da vida moderna com o surto do neocapitalismo, outras questões persistiam, exigindo soluções novas. Um dos efeitos da expansão do capitalismo da produção em massa foi o deslocamento da ação do capital da esfera individualista, que lhe fora circunscrita na órbita traçada por Adam Smith e os seus imediatos continuadores, órbita fechada em configurações ainda mais rígidas pelo comunismo dos dias de Richard Cobden, que levaram as ideias do fundador da economia clássica até limites que o autor da “Wealth of Nations” nunca previra. Dessa esfera, em que o individualismo tresloucado dos fanáticos liberais da escola de Manchester destituíra o jogo das forças econômicas dos elementos humanos e éticos, tão claramente perceptíveis nas ideias de Adam Smith, a ação do capital foi transferida para um plano de cooperação corporativista, de que o trust se tornou o órgão característico.

O capitalismo corporativo surgira, porém, com diretrizes traçadas exclusivamente por preocupações inerentes aos interesses particulares dos grupos que se associavam nos trusts. A estrutura do liberalismo econômico desconjuntara-se, não podendo resistir à ação contraditória dos egoísmos individuais com que a tinham argamassado os utopistas do laissez faire. A organização das corporações capitalistas foi imposta pelas necessidades econômicas, que exigiam a correção dos efeitos ruinosos do esbanjamento de energias em uma concorrência desbragada e de outros aspectos de desorganização anarquisante da produção e da distribuição, operadas em um regime de individualismo sem limites.

Esboçava-se, contudo, um perigo novo e, sob certos pontos de vista, não menos grave que a confusão precipitada pelos excessos da economia liberal. O capital organizava-se em formações próprias, ao mesmo tempo que o trabalho consolidava e aumentava a eficiência econômica e política das suas corporações Era a perspectiva de uma luta industrial, em que forças igualmente poderosas e temíveis, e ambas organizadas para se defrontarem, iriam empenhar-se em conflitos, cuja repercussão sobre a economia das coletividades nacionais e sobre a segurança dos Estados poderia acarretar efeitos destrutivos de incalculável alcance.

Foi da previsão das possibilidades do conflito entre as combinações capitalistas e as corporações trabalhistas que surgiu a ideia de uma renovação profunda do conceito do Estado, para elaborar em torno de organizações estatais, preparadas para intervir com eficácia na esfera econômica, um sistema corporativista de produção e de distribuição da riqueza. Essa ideia, que o legislador constituinte brasileiro introduziu como uma das finalidades do Estado Novo organizado pelo estatuto de 10 de Novembro, não é portanto nada que constitua uma característica do regime fascista. Aliás, ninguém melhor que um fascista, o insuspeitíssimo G. de Michelis (13), estudou e focalizou o caráter universal das causas e tendências do corporativismo contemporâneo, por forma a tornar inadmissível a opinião de que a adoção de um sistema de economia corporativa e a fisionomia corporativista de um Estado indiquem qualquer afinidade com as doutrinas do fascio. 

Mas antes de deixarmos este assunto, ao qual teremos entretanto de voltar em um dos capítulos ulteriores, cumpre-nos fazer uma observação de grande relevância. Longe de poder ter a seu crédito a criação do Estado corporativo, o regime fascista corrompeu, desvirtuou e anulou na Itália o sentido da organização corporativista. O princípio sobre o qual se baseia a ideia do Estado corporativo é o da representação da sociedade por meio dos órgãos que constituem os núcleos dos grupos econômicos e profissionais. De acordo com esta teoria, é dos sindicatos que devem partir, para convergirem no Estado, as expressões múltiplas das correntes que formam, no seu conjunto, a vontade nacional e podem ser consideradas como autênticas forças representativas da nação. 

Na Itália, a índole ditatorialista do sr. Mussolini e a fisionomia ultra-estatista da organização fascista inverteram o sentido do corporativismo. Em vez do Estado ser a expressão orgânica e dinâmica da nação, que nele atua através dos órgãos representativos das suas atividades econômicas e espirituais, tornasse a única realidade o propulsor exclusivo do dinamismo nacional, que é apenas um reflexo da vontade despótica do detentor da maquinaria estatal. O sindicato não é ,o núcleo donde promana para o Estado a energia da vontade nacional. E apenas um tentáculo burocrático, por meio do qual o Estado exerce o seu poder arbitrário dos múltiplos setores da nacionalidade comprimida e asfixiada nas malhas da organização totalitária. 

Felizmente a organização corporativa da economia nacional, preceituada como uma das finalidades primaciais do Estado Novo nos termos da letra a) do art. 61 da Constituição, nada tem de comum com o corporativismo espúrio que se encontra no regime fascista. 

 


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